quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A Alimentação no Juncal até meados do século XX

A alimentação das pessoas destas aldeias foi durante muito tempo confeccionada com produtos da terra, cultivados nas hortas familiares, para utilização e consumo imediato, ou cereais e leguminosas colhidas na safra anual e depois de secos conservados.
Os principais produtos hortícolas eram as batatas, cebolas, alhos, couves, nabos, ervilhas, abóboras, favas e chícharos. Sobre os chicharos vale a pena fazer referência -as gerações mais novas não sabem o que é -, leguminosa muito cultivada no período da conquista de terra, tinha grande valor na alimentação humana e animal, muito usado para engordar porcos e para alimentar animais de trabalho, nomeadamente quando em épocas de maior esforço. Após a conquista de terra, com o início da mecanização e surgimento das rações industriais a sua cultura deixou de se fazer, tendo desaparecido quase por completo. Hoje, para recuperar esta leguminosa e voltar a introduzi-la na alimentação humana fazem-se festivais gastronómicos do Chícharo, como tem acontecido todos os anos a partir de finais de 2006, perto de Fátima, na freguesia de Santa Catarina da Serra, concelho de Leiria e em Alvaiázere, onde se juntam dezenas de milhar de pessoas para provarem pratos diversos confeccionados a partir do Chícharo.
Das leguminosas o feijão era a mais importante, logo seguido da grão-de-bico. A propósito do feijão dizia-se “casa onde haja azeite, couves, broa e feijão, não entra a fome”. Comiam-se feijões depois de secos e quando não estavam maduros, em verde. Esta variedade para ser mais produtiva, após estarem as plantas nascidas, colocavam-se canas que serviam de tutores às quais as plantas se enrolavam e trepavam.
As leguminosas eram colocadas a secar na eira e quando estavam secas eram malhadas por homens com manguais. As ervilhas e favas só se cozinhavam para alimentação humana antes de atingirem a alimentação. Secas, eram para alimentação animal.
Sem rigor de classificação, semeavam-se dois tipos de ervilhas: as de grão em que só o grão era aproveitado e as ervilhas de quebrar, cujas vagens era espalmada e cujos grãos não atingiam o mesmo tamanho das outras ervilhas e era cozinhada e comida a própria vagem.
Cereais: Mais importante o milho, mas também o trigo. A aveia e a cevada eram semeados para obtenção de grão para alimentar animais e sobretudo para forragem. O centeio pouco semeado, semeava-se quando a reserva de pastos secos para os animais era insuficiente para garantir a sua alimentação. Mais temporão que as outras forragens evitava a fome dos animais.
As batatas também tiveram muita importância na alimentação humana. Originárias da Cordilheira do Perú e do Chile, só chegaram à Europa a partir da segunda metade do século XVI. A cultura da batata tanto se fazia em solos onde havia água para irrigação como também em algumas terras de sequeiro. Cultivava-se na melhor terra, que ás vezes também em cultura sucessiva, era cultivada com milho. A importância da batata na economia doméstica das populações resultava ainda de se poderem conservar ao longo do ano até à colheita seguinte sem grandes técnicas.
As sobras dos produtos alimentares eram vendidas nas feiras e mercados das vilas industrializadas próximas como, Porto de Mós, Batalha e Alcobaça. Transportadas em Carroças ou no dorso das bestas. Mais tarde vendidas a grossistas à porta.
O milho veio a ter muita importância. Originário do México, o milho chegou à Europa depois do descobrimento da América. Da farinha do milho fazia-se a broa que acompanhada com algum conduto, queijo, azeitonas, toucinho e chouriça, ou colocada sob a forma de miolos na sopa, era o principal suporte alimentar destas populações.
As famílias rurais e camponesas, mesmo as que tinham mais dificuldades económicas, agricultando alguns pedaços de terra, vivendo em autarcia, tinham sempre com que fazer uma refeição, melhor ou pior.
O toucinho da matança do porco, era parcimoniosamente administrado para durar o ano inteiro. Estava na salgadeira, conservado em sal. As famílias mais pobres e as mais numerosas, na época da matança do porco trocavam os presuntos obtidos do seu animal pelo toucinho do porco das famílias mais poderosas economicamente e cuja qualidade de vida lhes permitia outros mimos e outra qualidade de carne. Satisfaziam-se os mais carenciados com a troca pois exclamavam: “trocamos carne com osso por carne sem osso e ficámos com maior quantidade”. O porco que se matava engordava-se com restos da cozinha “lavadura”, bolota, figos, bagaço de azeitona, beterrabas, abóboras e um pouco de milho. Dava-se “lavadura”, despejada na pia do porco, escavada num monólito de pedra.
Papas
As papas feitas essencialmente à base de farinha de milho, era outro alimento que assumia papel importante na alimentação dos habitantes desta região. Gente com poucos recursos e muito laboriosa, não lhes sobrava tempo para confeccionar comida muito elaborada, nem muitas vezes os ingredientes estavam à mão para isso. Daí o recurso frequente às papas.
Concluindo, diríamos que os produtos da terra resultantes do trabalho familiar eram a base da alimentação. A gastronomia era pobre. O consumo de carne era baixo e pouco variado. A carne de porco que se matava era o conduto para o ano inteiro. Exceptuava-se uma ou outra galinha que se matava quando algum familiar estava doente ou nalgum dia festivo, algum quinhão de carne de vaca que cabia a cada associado da mútua quando morria um bovino de morte súbita ou acidente e da carne de cabra quando se participava em bodas, como por exemplo casamentos.
Os próprios animais eram alimentados com os produtos da terra, assim se reforçavam a autarcia familiar doméstica em que viviam as populações.

Cozedura da Broa

Peneirar a farinha para a massadeira
As tarefas em que tal prática se desdobrava eram realizadas numa sequência rigorosamente respeitada.
       A cozedura da broa era uma actividade exclusivamente pertencente à mulher, podendo o homem colaborar na preparação da lenha para o aquecimento do forno. Actividade que se fazia semanalmente, a mulher recebia a farinha do grão, que havia dias antes mandado no “taleigo” ao moleiro cuja unidade de transformação eram os moinhos de água e de vento. Peneirava-a directamente para o alguidar de barro. A farinha era escaldada com água a ferver. Depois, deixava-se arrefecer. Então, amassava-se juntando água morna e adicionando sal que previamente se derretera em água numa tigela. Adicionava-se fermento em apropriada quantidade. Ao amassar, juntava-se um pouco de farinha de trigo para que a broa não ficasse quebradiça e a esfarelar-se. Assim a broa ficava mais macia. Depois de assim amassada a massa era composta no alguidar, era-lhe dada a forma arredondada que se afagava ligeiramente com as mãos e era polvilhada com farinha. A massa levedava dentro de um grande alguidar de barro colocado na lareira, com branda fogueira acesa, e coberta com um pano branco. No Inverno era também tapada com a ajuda de um cobertor. No topo da massa era sempre desenhada, com um dedo, uma cruz ao mesmo tempo que era dita uma pequena oração “Deus te levede em pão”. Seguidamente a mulher tendia-a e metia-a no forno. Muitas vezes o fermento era pedido à vizinhança. O forno deveria estar bem quente ao mesmo tempo que a massa estivesse levedada.
A massa é benzida para levedar
 O forno aquecia-se com lenha miúda, geralmente com os galhos mais miúdos dos ramos de oliveira e de outras árvores e arbustos autóctones que se haviam cortado e posto no curral para as cabras se alimentarem das folhas. A parte que não era comida era colocada no espaço destinado a armazenar a lenha e depois era colocada no forno. O fornecimento da lenha ao forno era controlado com a forma como decorria o levedar da massa, dado ser necessário a existência do sincronismo entre uma coisa e outra. Para compor o lume no forno, ora chegando neste a lenha mais para um lado ou para o outro de modo a distribuir homogeneamente a temperatura dentro do forno, usava-se um rodo. O rodo era constituído por uma vara de pau com cerca de dois metros de comprimento com uma pequena tábua, com cerca de 50cm de comprimento, pregada numa das extremidades. Com este rodo também se puxavam as brasas e acinza do interior do forno para a boca quando se verificasse que a temperatura era a ideal.
A broa é cozida no forno a lenha
Para limpar o lastro do forno atava-se à pá do rodo um pano velho molhado para se lhe agarrarem as cinzas. A temperatura do forno era determinada por estimativa, a partir da cor da abóbada interior do forno feita de cerâmica.
Cozer pão era um saber transmitido de mães para filhas ainda adolescentes.
Hoje, uma moradia moderna não dispensa a existência de um belo forno, no entanto a sua utilização é reduzida não só por ser mais cómodo adquirir o pão ao padeiro que diariamente o deixa à porta, ou adquiri-lo em cafés e pastelarias, mas principalmente porque as donas de casa não sabem amassar e cozer pão. O forno é assim mais um equipamento decorativo.

Matança do Porco

Ligadas à matança do porco, estava um conjunto de tarefas que eram sempre e rigorosamente respeitadas.
Cerca de quinze dias antes, cortavam-se os tojos ou preparava-se a caruma com os quais se chamuscava os pêlos do porco a fim de os eliminar, actividade que se realizava logo após a morte do animal. Três ou quatro dias antes convidavam-se os familiares e amigos mais próximos para a matança que era antes de tudo um encontro familiar. Na véspera,  não se dava a ceia ao porco para que os intestinos estivessem vazios e mais fáceis de lavar. A propósito da falta da ceia ao porco contava-se frequentemente às crianças uma pequena história: ”Dizia-se que o burro que vivia no curral ao lado do chiqueiro do porco era, por este, muitas vezes gozado. O porco gabava-se de levar uma vida regalada, sem nada fazer e a quem era fornecida boa alimentação, enquanto o burro tinha de executar tarefas duras e transportar cargas pesadas, sujeitando-se ao frio à chuva e ao calor, por vezes mal alimentado. O burro por ter aprendido com a experiência ia dizendo ao porco que aguardasse o dia em que não lhe fosse fornecida ceia e que o dia seguinte seria o fim da sua vida”. Começavam-se os preparativos para a festa, nomeadamente cozer a broa e fazer as filhós. Limpavam-se os utensílios, que há um ano não eram usados, como o xambaril, a salgadeira, o tabuleiro de madeira para colocar as tripas, a bexiga e o estômago (buxo) quando se procedia à abertura do animal.
Às vezes, após se ter procedido à marcação da matança e feitos os convites verbalmente, havia a necessidade de alterar a calendarização deste acontecimento. Tratando-se geralmente de matar porcas reprodutoras (Refugo) e,  se por ventura lhes chegasse o cio nas vésperas, não se procedia ao abate por dizerem que a carne ficava com outro sabor. Evitava-se sempre que  possível esta situação.
O porco é amarrado pelo chamaril a uma viga da despensa
Não havia o hábito de matar porcos machos, pela razão que não os havia. Geralmente na aldeia havia um produtor que possuía o varrasco que era alugado aos possuidores de porcas reprodutoras. Ao contrário de regiões vizinhas aqui não era o varrasco que se deslocava às suas “clientes”, mas era a fêmea que o visitava.
A porca era morta geralmente por asfixia. A porca saía do chiqueiro para o pátio, onde vários homens a agarravam e a derrubavam sobre mato de caruma com os membros para cima. Dois homens agarravam  as mãos do animal e colocavam-lhe o joelho no pescoço. Outros dois homens agarravam  as patas. Durante dez minutos assim permanecia o animal até que se concluísse que estava morto.
Seguidamente ateava-se o fogo ao tojo seco ou à caruma e, com uma forquilha, um dos homens ia passando com a chama sobre o animal enquanto os outros com facas velhas iam raspando o pêlo. Após este trabalho colocava-se a porca sobre uma bancada de madeira improvisada e lavava-se,  utilizando-se para esfregar a pele pedaços de telha de canudo de barro. Ficava impecavelmente limpa e “fazia-se o cu” . Este trabalho era feito por um homem mais especializado nesta tarefa que geralmente o fazia em todas as matanças onde ia. "Fazer o cu" consistia em abrir um circulo à volta do ânus do animal, a fim de poder atar com  um fio  o fim do intestino grosso para evitar que as fezes saíssem e sujassem o porco. Colocava-se o chambaril nas patas entre o nervo do pezunho e o xispo. Pelo chambaril se amarrava o porco a uma viga da despensa. De cabeça para o soalho, a cerca de trinta cm do mesmo, procedia-se à abertura. Tiradas as tripas,  as mulheres cortavam-nas em dimensões semelhantes e lavavam-nas muito bem. Estando lavadas eram colocadas num recipiente com sal, casca de limão e cebola onde permaneciam até ao dia em que se enchiam com carne e se faziam as chouriças.
O porco ficava aberto um dia a enxugar e no dia seguinte fazia-se o desmancho. Preparavam-se os presuntos. Quando se estava a abrir o porco todos os internvenientes da festa iam ver a espessura do toucinho. Quanto mais grossura tivesse melhor. Batia-se com uma mão na "manta" de toucinho do porco e exclamava-se “ Um cento como este!”.
Com o fígado e com o bofe fazia-se o prato mais esperado para a festa da matança e que se designava por cachola. Além deste prato havia sopa de grão de bico com batata e couve. Alguns frutos e filhós. Assim terminava a festa da matança, ficando para os dias seguintes a distribuição aos mais próximos da morcela.

Manuel Carvalho - Professor de História do Instituto Educativo do Juncal

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